E isso era bem verdade. Não que ele fosse algum tipo de gênio,
longe disso. Só não era nem perto da burrice que aparentava, e isso não era um
disfarce, suas funções de fala, de formação de discursos estava completamente
comprometida. Muito além de uma sequela física, era algo mágico, enraizado no
fado. Nunca mais seria capaz de dizer uma única frase que não o fizesse parecer
um completo idiota.
Antes de partir, de ser arrastado pelos espinhos por um
monstro devorador de pessoas, ele era um sujeito boa pinta, cheio de charme e
conversa mole. Um arrebatador de corações das noites de São Francisco. Tinha um
bom emprego, lidava com o público e era bom nisso, muitos amigos, pais e irmãos
com quem mantinha um bom contato e namoradas aqui e ali. Sempre festeiro,
aproveitando a vida, os bons drinks, a boa comida, o bom sexo. Mas lembrar
disso não lhe fazia nenhum bem ultimamente. Ele não conseguia lembrar seu
próprio nome, aquela pessoa que ele era não existia mais, nem no papel.
Seu captor não se deu nem ao trabalho de lhe deixar um
duplo, algo em que ele pudesse se vingar. Seus familiares, amigos, colegas de
trabalho, paixões momentâneas, simplesmente se esqueceram dele. E não demoraram
muito a fazê-lo. Toda sua alegria era como uma festa, só marca até que uma nova
surja. Não havia espaço no mundo para fazer isso de novo.
— Grod é só músculos agora. — Ele disse ao socar e quebrar o
espelho diante dele. Já era difícil contabilizar quantos espelhos ele quebrará
desde que voltou ao mundo mortal. — Grod depende do rosinha pra ter calor
humano. Grod não serve sozinho.
Ele saiu do banheiro, afastando suas frustrações. Se não
fosse pelo acolhimento de Christopher e seus ensinamentos nos dons da
primavera, Grod nunca conseguiria ter o pouco de interação humana que
conseguia. Sem a tutela do Olhos Purpuras ele provavelmente seria a
representação final de sua fachada inventada, se resumiria aquilo a que foi
transformado pelos demônios dos sonhos, provavelmente já estaria morto na linha
de frente de alguma guerra estupida das outras cortes.
A Primavera deu-lhe motivos para viver e o caminho para não
enlouquecer, e mesmo ciente que o amor que conquistava, o desejo que despertava
era meramente ilusório, era uma mentira melhor que aceitar sua horrenda
verdade.
— Grod pronto, chefe. — Ele disse ao se aproximar da
Christopher. Sua forma de agradecer e honrar esse homem que lhe guiara era
servir-lhe de eficiente guarda-costas. — Grod leva chefe a festa.
Chris por sua vez, acabava de ajeitar a gravata da mesma cor
da luz que irradiava de seus olhos. E antes de simplesmente sair para seu
evento social percebeu a gota de sangue viscoso que caia da mão de seu fiel
guardião.
— Grod!? O que foi isso? — Disse em um tom paternal, pegando
a grande mão do Ogro e observando o ferimento. — O espelho vem lhe incomodando
de novo?
Grod não respondeu, estava envergonhado por fazer isso
repetidas vezes, mas a expressão compreensiva de seu chefe lhe proporcionava
algum conforto. Chris segurou a grande mão ferida com suas duas pequenas e
evocou a luz de sua alma, sua benção da Primavera, fazendo os cacos de vidro
serem expelidos, os ferimentos fecharem sem deixar qualquer tipo de cicatriz.
Com muito zelo soltou a mão, agora perfeita, de seu segurança.
— Vamos, Grod. Não se preocupe com isso, manderei colocarem
um novo espelho para você amanha. — Ele colocou o paletó impecavelmente passado
e caminhou para a saída da casa. — Já lhe disse que sua madrinha pode
ensinar-lhe o truque para parecer-se como preferir. Se sua imagem lhe incomoda,
se é seu desejo não a ver, podemos mudar isso.
— Não! Grod não quer ser outro. — Disse como se fosse
vociferar, mas lembrou-se do respeito que sentia por aquele homem e baixou
gradativamente o tom de voz. — Grod aceita enganar pessoas... para o bem da
cabeça quebrada de Grod... Mas Grod não quer enganar Grod mesmo.
— Eu lhe entendo, grandão. Não se aflija. Sempre que quiser
conversar a respeito, sempre que quiser se sentir melhor, estarei aqui por
você. — E Chris entrou no banco de trás da limusine que Grod iria dirigir. —
Agora vamos, tenho certeza que uma boa noite de álcool e garotas lhe fará muito
bem.
E faria mesmo. Era a salvação para alguém como ele, embriagar-se
para esquecer de seus problemas, e enfeitiçar garotas para não darem atenção a
seu jeito de falar, a sua brutalidade nos movimentos.
Do lado de lá, em Arcádia, ele precisou fazer coisas horríveis.
Teve de se alimentar exclusivamente dos restos humanos que seu captor não
queria. Muitas vezes não só humanos... Seu captor ocasionalmente preparava um
banquete especial a base de outros Feés verdadeiros, coisas estranhas com gostos
ainda mais estranhos. Lá, Grod precisava lutar, matar, mutilar, destruir... Eram
todas essas coisas que ele não queria precisar fazer de novo. Só viver a boa
vida, esquecer o que diabos tinha de esquecer e se reencontrar com o pouco que
restava dele mesmo dentro de si, para afastar as ideias de auto aniquilação.
Grod só precisava viver as paixões, simular o amor, e tudo
ficaria bem.
— Grod, a primavera vem chegando. Ainda durante o inverno iremos
iniciar os jogos para aclamarmos o novo líder de nossa corte. Acha que eu tenha
com o que me preocupar? — Christopher disse do escuro, no fundo do carro, onde
estava perdido em seus pensamentos. — Imagina algo que possa sair do esperado?
Grod não era burro, mas todos pensavam que ele era ou
simplesmente não conseguiam se lembrar por muito tempo do contrário. Isso vez
por outra dava-lhe alguma vantagem, alguém dizia ou fazia algo diante dele, as
vezes falava diretamente a ele, divertindo-se com a suposta incapacidade do brutamontes
em entender a politica. Mas ele entendia, e estaria sempre ao lado de seu
benfeitor.
— Grod não vê perigo. Grod acha que chefe não tem... Adve...
Adversários perigosos. — Não era o que ele pensava de verdade, mas se
asseguraria que fosse verdade. Qualquer um que parecesse uma ameaça relevante,
poderia aparecer com as pernas quebradas.
Grod não era burro, e não gostava de ser como é, preferia a
boa vida e a diversão... Mas certos prazeres na violência são difíceis demais
de se ignorar.
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