Lewis, o empoeirado é provavelmente o membro menos notável da
corte do Inverno. Não no sentido interessante de não ser notável, o que seria
uma grande qualidade para preceitos comuns a corte, ele era esquecido
simplesmente por ser incapaz de se destacar em quaisquer aspectos. O que para
ele mesmo, já era ‘infortúnio’ suficiente.
Sua vida era plácida e sem muita emoção antes do rapto. O
que não mudou de verdade do lado de lá da sebe. Aqui ele era um contador sem
muitos clientes, só o suficiente para sustentar uma vida sem luxos, uma esposa
desinteressante e dois filhos sem muito brilho. Lá ele não aprendeu nada de
novo, e nem usava realmente o que sabia. Seu protetor era uma espécie curiosa
de duende cuja aparência ele já não lembrava muito bem; o que os sonhos e
pesadelos ao longo do tempo que se passara depois da fuga lhe lembravam com frequência
apenas da monótona tarefa de revisar, contar e empilhar as muitas moedas de
ouro que seu gentil acumulava em cavernas úmidas. Preenchendo uma papelada sem
fim que só confirmava os mesmos valores, não havia muita entrada ou saída, só
conferir, contar, conferir, contar...
‘Toc-toc’, alguém bateu a sua porta. E dada à hora ele sabia
que se tratava de um perdido. No fundo nem mesmo o medo de seu Leprechaun lhe
assolava. Era consciente que se a contagem de moedas depois de sua fuga
estivesse certa, e ele nem cogitou a hipótese de carregar uma moedinha que
fosse, sua ausência nem mesmo seria sentida. Ele caminhou pesarosamente até a
porta e a abriu.
— Boa noite, Branca. — Ele disse já se virando de volta a
mesa velha, indo se sentar sem muito entusiasmo. — Alguma coisa errada com os
impostos do Castelo? – E não era nenhum tipo de piada, a empresa de Branca de
Neve realmente tinha esse nome.
— Não, nada de errado com os papeis, Empoeirado. — E ele não
gostava desse nome, mas também já desistira de lutar contra ele. — Vim aqui só
para conversar um pouco com você, ver como você está. — Ela se sentou na
pequena cadeira diante dele. — Você não tem aparecido e nem recebido outros
Changelings, tenho de me preocupar com sua saúde. Espero não lhe incomodar.
Ela incomodava sim. Ele queria ser deixado de lado, não
tinha talento ou paciência para a sociedade dos perdidos, e na verdade não ia
bem na sociedade mortal também. Não conseguira recriar uma vida decente, e nem
tivera coragem ou estomago para enfrentar seu duplo e retomar sua vida insossa
de outrora. Ele não reconhecia isso, mas só queria ser esquecido debaixo da
poeira fazendo todos os dias o mesmo trabalho repetitivo. Alguns perdidos
simplesmente não conseguem ir além.
— Não, não me incomoda. Agradeço sua preocupação. — Disse
polidamente, não era de reclamar, nem antes, nem durante, nem agora. — Mas...
Sobre que iriamos conversar?
— Fale-me da sua vida, como andam as coisas. Sei que não
somos tão próximos, mas eu me considero sua amiga. — Ela ajeitou-se na cadeira,
um pouco desconfortável no ambiente. — Se preferir podemos sair, beber alguma
coisa, quem sabe um passeio na praia?
Aquelas ideias chegavam a disparar a acidez de seu estomago.
Os bares eram vertiginosos, cheios de pessoas que olhavam para ele com
desaprovação, mulheres bonitas que nunca falariam com ele, conversar que ele
não entendia e nem queria entender. A praia até poderia ser um bom lugar para
ir a noite, sozinho, se não fosse o perigo, a maresia e a areia. Ele detestava
areia. Ele sabia também que Branca não tinha nenhum interesse genuíno nessa tal
amizade, ela provavelmente só estava preocupada com a sanidade dele. Já estava
no feudo tempo o suficiente para saber que a vida de solitária mexia com a
cabeça dos changelings mais do que mexia antes do sequestro. E ele considerava
que essa preocupação advinha de evitar o trabalho dobrado se ele enlouquecesse,
ou a mando de sua rainha, a Dama Branca, que tentava mostrar algum serviço e mantê-lo
na corte, só para engordar os números.
Lewis não se importava em ser um número, na verdade, até
gostava disso.
— Não é necessário, Branca. Vejo algum cliente todos os
dias. E ao menos duas vezes por semana são perdidos. Mantenho minha rotina para
não precisar preocupar ninguém. — Disse no tom mais próximo de desabafo que
conseguia, mas faltava entusiasmo até mesmo para isso.
— Não se trata disso, Lewis, eu estou aqui como amiga, não
como estrita cortesia. — E aquela última palavra carregava um significado singular
para ela. — Eu queria saber se... se você está feliz?
Ele ouviu a pergunta com atenção. O que surpreendeu ele
mesmo. Não se fizera essa pergunta, não até onde se lembrava. Felicidade, o que
era essa tal? Estava ‘confortável’ em simplesmente não se meter em problemas.
Sentia-se em paz. Mesmo sufocando aqueles tolos devaneios de heroísmo, onde ele
era muito mais capaz do que realmente poderia, salvava donzelas e fazia
discursos inflamados para outros perdidos. Aqueles delírios onde tinha uma casa
enorme, um carro caro e seus filhos que não eram mais seus estavam na faculdade
que escolheram e prestes a convida-lo para grandes festas de casamento... não
aqueles delírios não poderiam ser a felicidade, essa tal não haveria de ser
algo tão impossível assim.
— Claro, estou plenamente feliz. Não há nada na minha vida
que eu gostaria de mudar. — E sua voz não trazia nenhum sinal de ironia, o
conformismo já lhe caia tão bem que era a cor de seus olhos. — Você realmente
não precisa se preocupar, Branca.
— Estou dizendo, não estou aqui para vigia-lo. Sério. Só
queria poder ajudar, saber se algo que eu possa fazer por você, e não estou
tentando negociar nenhum tipo de favor ou coisa assim. Eu realmente me importo.
— Ela dizia, parecia sincera, mas ele não se interessava. — Tanta coisa
acontecendo lá fora, no feudo, na cidade, e você parece não se interessar por
nada. É isso realmente que você quer?
Não se interessar por nada. Era um ponto curioso. Ele não
conseguia mais dizer onde era a linha que separava o fato dele não se
interessar e o das pessoas não se interessarem nele. O cara esquecido, velho,
cheio de manias que só conhece balancetes e planilhas. Ele provavelmente seria
chato até mesmo em uma convenção de contadores sobre juros compostos. E levando
ao lado mágico da coisa, essa falta de interesse enredada no fado fazia com que
as coisas em si não fossem interessadas nele. Ele era ruim até mesmo em manter
seus contratos com a matéria, última elo relevante com o mundo.
— Branca... Essa conversa não pode acabar bem... — Ele se
aproximou do seu limite, estava começando a se zangar. Nada que pudesse levar a
qualquer tipo de rompante ou cena, só não queria que ela continuasse ali
cutucando-o sobre sua vida. O que poderia ser tão relevante ao ponto de não
poder deixa-lo em paz? — Eu realmente não quero ouvir isso... só... só me deixe
em paz e volte para sua vida bonita cheia de amigos encantados e felizes. Eu
sou algo diminuído e esquecido, não sou bonito ou luminoso como você.
E depois que falou, arrependeu-se. Devia apenas ter concordado
e desconversado quanto tempo fosse preciso. Como sempre costumava fazer, era só
não dar atenção e deixar ela se satisfazer de alguma forma. Agora ele sabia que
havia despertado nela alguma comoção. Algum sentimento, e isso traria ainda
mais falas. Felicidade... Por que precisava disso?
— Está certo. Não quero lhe incomodar ou ofender.
Desculpe-me pela visita. — Ela se levantou e se dirigiu a porta, mantendo-se
firma para não demonstrar a insatisfação com o encontro. — Tenha uma boa noite,
Lewis. Mas, lembre-se; todos nós sofremos lá. Todos nós temos nossas
cicatrizes. Não é possível medir quem sofreu mais ou menos. Se mudar de ideia,
se quiser uma amiga, sabe como me encontrar.
Ela saiu e fechou a porta. Ele ficou parado olhando para
porta fechada. Ainda ofendido por aquela garota. Quem ela pensava que era para
questionar as escolhas dele? Ela que era linda, rica, eficiente, bem
relacionada... Não era capaz de aceitar que os outros encontrassem a felicidade
com uma receita diferente da dela? Não poderia ele viver no silêncio?
— Infortúnio... — Foi o que ele disse tarde da noite em seu minúsculo
escritório no lado feio do centro da cidade. — Logo virá a primavera.
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