domingo, 18 de março de 2012

Um bom ano – 1ª parte, o inverno.

— Infortúnio... — É o que ele costuma dizer sozinho tarde da noite em seu minúsculo escritório na parte feia do centro da cidade. — Lá se vai mais um inverno.

Lewis, o empoeirado é provavelmente o membro menos notável da corte do Inverno. Não no sentido interessante de não ser notável, o que seria uma grande qualidade para preceitos comuns a corte, ele era esquecido simplesmente por ser incapaz de se destacar em quaisquer aspectos. O que para ele mesmo, já era ‘infortúnio’ suficiente.

Sua vida era plácida e sem muita emoção antes do rapto. O que não mudou de verdade do lado de lá da sebe. Aqui ele era um contador sem muitos clientes, só o suficiente para sustentar uma vida sem luxos, uma esposa desinteressante e dois filhos sem muito brilho. Lá ele não aprendeu nada de novo, e nem usava realmente o que sabia. Seu protetor era uma espécie curiosa de duende cuja aparência ele já não lembrava muito bem; o que os sonhos e pesadelos ao longo do tempo que se passara depois da fuga lhe lembravam com frequência apenas da monótona tarefa de revisar, contar e empilhar as muitas moedas de ouro que seu gentil acumulava em cavernas úmidas. Preenchendo uma papelada sem fim que só confirmava os mesmos valores, não havia muita entrada ou saída, só conferir, contar, conferir, contar...


‘Toc-toc’, alguém bateu a sua porta. E dada à hora ele sabia que se tratava de um perdido. No fundo nem mesmo o medo de seu Leprechaun lhe assolava. Era consciente que se a contagem de moedas depois de sua fuga estivesse certa, e ele nem cogitou a hipótese de carregar uma moedinha que fosse, sua ausência nem mesmo seria sentida. Ele caminhou pesarosamente até a porta e a abriu.

— Boa noite, Branca. — Ele disse já se virando de volta a mesa velha, indo se sentar sem muito entusiasmo. — Alguma coisa errada com os impostos do Castelo? – E não era nenhum tipo de piada, a empresa de Branca de Neve realmente tinha esse nome.

— Não, nada de errado com os papeis, Empoeirado. — E ele não gostava desse nome, mas também já desistira de lutar contra ele. — Vim aqui só para conversar um pouco com você, ver como você está. — Ela se sentou na pequena cadeira diante dele. — Você não tem aparecido e nem recebido outros Changelings, tenho de me preocupar com sua saúde. Espero não lhe incomodar.

Ela incomodava sim. Ele queria ser deixado de lado, não tinha talento ou paciência para a sociedade dos perdidos, e na verdade não ia bem na sociedade mortal também. Não conseguira recriar uma vida decente, e nem tivera coragem ou estomago para enfrentar seu duplo e retomar sua vida insossa de outrora. Ele não reconhecia isso, mas só queria ser esquecido debaixo da poeira fazendo todos os dias o mesmo trabalho repetitivo. Alguns perdidos simplesmente não conseguem ir além.

— Não, não me incomoda. Agradeço sua preocupação. — Disse polidamente, não era de reclamar, nem antes, nem durante, nem agora. — Mas... Sobre que iriamos conversar?

— Fale-me da sua vida, como andam as coisas. Sei que não somos tão próximos, mas eu me considero sua amiga. — Ela ajeitou-se na cadeira, um pouco desconfortável no ambiente. — Se preferir podemos sair, beber alguma coisa, quem sabe um passeio na praia?

Aquelas ideias chegavam a disparar a acidez de seu estomago. Os bares eram vertiginosos, cheios de pessoas que olhavam para ele com desaprovação, mulheres bonitas que nunca falariam com ele, conversar que ele não entendia e nem queria entender. A praia até poderia ser um bom lugar para ir a noite, sozinho, se não fosse o perigo, a maresia e a areia. Ele detestava areia. Ele sabia também que Branca não tinha nenhum interesse genuíno nessa tal amizade, ela provavelmente só estava preocupada com a sanidade dele. Já estava no feudo tempo o suficiente para saber que a vida de solitária mexia com a cabeça dos changelings mais do que mexia antes do sequestro. E ele considerava que essa preocupação advinha de evitar o trabalho dobrado se ele enlouquecesse, ou a mando de sua rainha, a Dama Branca, que tentava mostrar algum serviço e mantê-lo na corte, só para engordar os números.

Lewis não se importava em ser um número, na verdade, até gostava disso.

— Não é necessário, Branca. Vejo algum cliente todos os dias. E ao menos duas vezes por semana são perdidos. Mantenho minha rotina para não precisar preocupar ninguém. — Disse no tom mais próximo de desabafo que conseguia, mas faltava entusiasmo até mesmo para isso.

— Não se trata disso, Lewis, eu estou aqui como amiga, não como estrita cortesia. — E aquela última palavra carregava um significado singular para ela. — Eu queria saber se... se você está feliz?

Ele ouviu a pergunta com atenção. O que surpreendeu ele mesmo. Não se fizera essa pergunta, não até onde se lembrava. Felicidade, o que era essa tal? Estava ‘confortável’ em simplesmente não se meter em problemas. Sentia-se em paz. Mesmo sufocando aqueles tolos devaneios de heroísmo, onde ele era muito mais capaz do que realmente poderia, salvava donzelas e fazia discursos inflamados para outros perdidos. Aqueles delírios onde tinha uma casa enorme, um carro caro e seus filhos que não eram mais seus estavam na faculdade que escolheram e prestes a convida-lo para grandes festas de casamento... não aqueles delírios não poderiam ser a felicidade, essa tal não haveria de ser algo tão impossível assim.

— Claro, estou plenamente feliz. Não há nada na minha vida que eu gostaria de mudar. — E sua voz não trazia nenhum sinal de ironia, o conformismo já lhe caia tão bem que era a cor de seus olhos. — Você realmente não precisa se preocupar, Branca.

— Estou dizendo, não estou aqui para vigia-lo. Sério. Só queria poder ajudar, saber se algo que eu possa fazer por você, e não estou tentando negociar nenhum tipo de favor ou coisa assim. Eu realmente me importo. — Ela dizia, parecia sincera, mas ele não se interessava. — Tanta coisa acontecendo lá fora, no feudo, na cidade, e você parece não se interessar por nada. É isso realmente que você quer?

Não se interessar por nada. Era um ponto curioso. Ele não conseguia mais dizer onde era a linha que separava o fato dele não se interessar e o das pessoas não se interessarem nele. O cara esquecido, velho, cheio de manias que só conhece balancetes e planilhas. Ele provavelmente seria chato até mesmo em uma convenção de contadores sobre juros compostos. E levando ao lado mágico da coisa, essa falta de interesse enredada no fado fazia com que as coisas em si não fossem interessadas nele. Ele era ruim até mesmo em manter seus contratos com a matéria, última elo relevante com o mundo.

— Branca... Essa conversa não pode acabar bem... — Ele se aproximou do seu limite, estava começando a se zangar. Nada que pudesse levar a qualquer tipo de rompante ou cena, só não queria que ela continuasse ali cutucando-o sobre sua vida. O que poderia ser tão relevante ao ponto de não poder deixa-lo em paz? — Eu realmente não quero ouvir isso... só... só me deixe em paz e volte para sua vida bonita cheia de amigos encantados e felizes. Eu sou algo diminuído e esquecido, não sou bonito ou luminoso como você.

E depois que falou, arrependeu-se. Devia apenas ter concordado e desconversado quanto tempo fosse preciso. Como sempre costumava fazer, era só não dar atenção e deixar ela se satisfazer de alguma forma. Agora ele sabia que havia despertado nela alguma comoção. Algum sentimento, e isso traria ainda mais falas. Felicidade... Por que precisava disso?

— Está certo. Não quero lhe incomodar ou ofender. Desculpe-me pela visita. — Ela se levantou e se dirigiu a porta, mantendo-se firma para não demonstrar a insatisfação com o encontro. — Tenha uma boa noite, Lewis. Mas, lembre-se; todos nós sofremos lá. Todos nós temos nossas cicatrizes. Não é possível medir quem sofreu mais ou menos. Se mudar de ideia, se quiser uma amiga, sabe como me encontrar.

Ela saiu e fechou a porta. Ele ficou parado olhando para porta fechada. Ainda ofendido por aquela garota. Quem ela pensava que era para questionar as escolhas dele? Ela que era linda, rica, eficiente, bem relacionada... Não era capaz de aceitar que os outros encontrassem a felicidade com uma receita diferente da dela? Não poderia ele viver no silêncio?

— Infortúnio... — Foi o que ele disse tarde da noite em seu minúsculo escritório no lado feio do centro da cidade. — Logo virá a primavera.

Nenhum comentário:

Postar um comentário