quarta-feira, 11 de abril de 2012

Um bom ano – 4ª parte, o outono.


— Eu não entendo como você pode comer essas coisas. Você deveria ter uma boina vermelha logo de uma vez, já que é assim. — Disse a garotinha mal vestida com o rosto sujo. — Você deveria comer mais carne crua, verá como faz bem.

Debaixo daquela imensa ponte o tempo era quase irrelevante. Quem passava muito tempo ali só via o nascer e o por do sol como referências temporais, e há muitos perdidos que digam que é só isso mesmo que importa. O homem que escutava a garotinha se chamava Abraham; Abraham da Ponte, como era de se esperar. Ele passava muito tempo ali, e mesmo não gostando muito disso, recebia visitas com muita frequência. Aquela garotinha em particular era uma das poucas que não o desagradava por completo.

— Você é quem devia parar com isso, Leviatã. Isso te distancia da humanidade como nada mais poderia fazer. — Ele tirou uma bengala de madeira velha e carcomida de dentro de seu saco, apesar da degradação era possível perceber que aquela fora uma bengala e tanto um dia. Girou-a entre os grandes dedos e observou o acabamento do marfim de sua empunhadura. — Comer gente é errado.


A garotinha com nome de imensidão ajeitou-se na pedra onde estava sentada. Observou o mar por alguns segundos, em silêncio. Ela realmente tentava entender o quão errado era comer as pessoas más. Ela tinha um apetite particular por assassinos, mas estupradores e sequestradores também eram particularmente saborosos. Percebia como isso incomodava as pessoas, quanto medo isso provocava. Era o contraste de sua idade, imaginava, ela via outras crianças por ai e já era capaz de reconhecer o que era inocência. Mesmo nunca tendo vestido isso ela mesma. Ser sequestrada quando era um bebê e conseguido voltar também assustava os outros perdidos. Ela era jovem demais para acumular tantas exceções em ombros tão pequenos.

— Não sei se eu viveria comendo outra coisa. Eu cresci comendo gente, é a minha natureza agora. — Ela olhou para a ponte acima deles, prestando atenção no barulho dos muitos carros que iam e viam. — Tem gente demais nesse mundo, minhas refeições não vão fazer falta.

O troll da ponte mordeu e arrancou um pedaço da bengala com a qual se distraia, mastigando sem atenção o marfim como se fosse pão. Ele e a garotinha tinham muito em comum, eram da mesma espécie, sofreram os mesmos maus tratos e agora faziam parte da mesma corte. Ambos sentiram tanto medo que não conheciam tão bem outros sentimentos para saber usa-los. Ele fora levado na idade que ela parecia ter agora, e de certa forma, um pensamento meio distorcido, ficava feliz que tivesse a chance de viver livre a partir dali. Com sorte não se lembraria de muita coisa, as memorias da infância tendem a ser mais fugazes.

— Ouvi dizer que O Escorregadio está te ensinando a ler e escrever. — E mordeu agora um pedaço da madeira, mastigando lentamente sem se preocupar com farpas. — Você tá gostando?

— Estou sim. Acho engraçado como alguns de nossa corte se refere a magia, como coisas misteriosas, segredos, complexidades imaginativas. Pra mim esse mundo aqui que é misterioso. Seus muitos códigos, muitas geringonças das quais as pessoas se tornam completamente dependentes. — Ela sorriu para o grandalhão, simulando a humanidade que deveria ser-lhe inerente. — Eu posso não saber ler, escrever ou calcular, mas as promessas, por exemplo, são pra mim como os humanos negociam seu precioso dinheiro. Eu simplesmente sei fazer, sei reconhecer as trapaças e tudo mais. Acho engraçado como minha percepção desse lugar me faz capaz de conseguir tudo o que quero através das brechas que a cultura os faz ignorar.

— Para quem diz domar os benefícios da ignorância, você fala muito bem. — O ogro se levantou e foi até a beira mar beber água salgada. Lavou as mãos como se tivesse comido algo gorduroso e voltou para ficar em silêncio junto a garotinha. — Você também está muito boa em parecer ser só uma menininha como as que cresceram aqui.

— É verdade, eu me esforço muito para isso. Dois anos atrás quando eu cheguei eu mal conseguia me comunicar. Não sabia como lidar com as pessoas ou como me vestir. Só pensava em onde me esconder, onde conseguir comida, quem era perigoso e eu devia abater antes que me abatesse... Eu era... Inocente!? — Ela brincou com os cabelos propositalmente, sendo metódica como se reproduzisse uma lição. — O escorregadio me ensinou a ser humana, e eu sou boa nisso porque sempre soube como a camuflagem é uma boa forma de proteção. Além de que, esse monstro que eu sou agora é um monstro muito melhor do que parecer com meu protetor.

Leviatã não se lembrava muito bem, mas seu raptor original era uma fada da beleza e da música, que apesar de ser capaz de encantar a todos e inspirar as maiores criações era incapaz, ela mesma, de criar algo digno. Em maior parte por se entediar do processo de criação em andamento, em parte por não ver utilidade em algo feito por ela, e não para ela. Ela inspirou os mortais para fazerem aquela criança, e a levou para Feéria como lhe era devido. Até mesmo deixou um dos seus trabalhos inacabados no lugar, uma criancinha feita de lixo, folhas e sombras que cresceu doente e logo morreu. Aqueles pais se separaram e se mudaram, criando novas famílias longe dali e se esquecendo da criancinha assustadora que por um curto espaço de tempo criaram.

Essa fada da beleza, por sua vez, se cansava das obras que faziam para ela, e logo trocou o bebê pela direito de passar por uma montanha cheia de gigantes devoradores de gente. E o bebê só não foi comido porque os gingantes decidiram que era melhor esperar crescer para oferecer uma refeição mais satisfatória.

E o bebê cresceu. Cresceu tanto que mesmo sendo uma criança era do tamanho dos gigantes, e eles não conseguiam mais comê-la facilmente, e só tentavam fazer isso quando ninguém tentava passar pela montanha por muito tempo, deixando-os com fome demais. Essa criança tornara-se esperta, e nunca contara ou mostrara aos gingantes que ela era capaz de encolher. E quando encolhia ao tamanho dos humanos, ia até os vilarejos ao pé da montanha e com algumas poucas lágrimas logo conseguia atrair comida suficiente para os gigantes para ser deixada em paz. Comida suficiente para ela crescer cada vez mais, até poder comer os gigantes também.

E comer a montanha.

— Me diga, Abraham, dessas pessoas que vivem aqui debaixo da ponte... alguma delas matou alguém?

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