— Eu não entendo como você pode comer essas coisas. Você
deveria ter uma boina vermelha logo de uma vez, já que é assim. — Disse a
garotinha mal vestida com o rosto sujo. — Você deveria comer mais carne crua,
verá como faz bem.
Debaixo daquela imensa ponte o tempo era quase irrelevante.
Quem passava muito tempo ali só via o nascer e o por do sol como referências
temporais, e há muitos perdidos que digam que é só isso mesmo que importa. O
homem que escutava a garotinha se chamava Abraham; Abraham da Ponte, como era
de se esperar. Ele passava muito tempo ali, e mesmo não gostando muito disso,
recebia visitas com muita frequência. Aquela garotinha em particular era uma
das poucas que não o desagradava por completo.
— Você é quem devia parar com isso, Leviatã. Isso te
distancia da humanidade como nada mais poderia fazer. — Ele tirou uma bengala
de madeira velha e carcomida de dentro de seu saco, apesar da degradação era possível
perceber que aquela fora uma bengala e tanto um dia. Girou-a entre os grandes
dedos e observou o acabamento do marfim de sua empunhadura. — Comer gente é
errado.
A garotinha com nome de imensidão ajeitou-se na pedra onde
estava sentada. Observou o mar por alguns segundos, em silêncio. Ela realmente
tentava entender o quão errado era comer as pessoas más. Ela tinha um apetite
particular por assassinos, mas estupradores e sequestradores também eram
particularmente saborosos. Percebia como isso incomodava as pessoas, quanto
medo isso provocava. Era o contraste de sua idade, imaginava, ela via outras
crianças por ai e já era capaz de reconhecer o que era inocência. Mesmo nunca
tendo vestido isso ela mesma. Ser sequestrada quando era um bebê e conseguido
voltar também assustava os outros perdidos. Ela era jovem demais para acumular
tantas exceções em ombros tão pequenos.
— Não sei se eu viveria comendo outra coisa. Eu cresci
comendo gente, é a minha natureza agora. — Ela olhou para a ponte acima deles,
prestando atenção no barulho dos muitos carros que iam e viam. — Tem gente
demais nesse mundo, minhas refeições não vão fazer falta.
O troll da ponte mordeu e arrancou um pedaço da bengala com
a qual se distraia, mastigando sem atenção o marfim como se fosse pão. Ele e a
garotinha tinham muito em comum, eram da mesma espécie, sofreram os mesmos maus
tratos e agora faziam parte da mesma corte. Ambos sentiram tanto medo que não
conheciam tão bem outros sentimentos para saber usa-los. Ele fora levado na
idade que ela parecia ter agora, e de certa forma, um pensamento meio
distorcido, ficava feliz que tivesse a chance de viver livre a partir dali. Com
sorte não se lembraria de muita coisa, as memorias da infância tendem a ser
mais fugazes.
— Ouvi dizer que O Escorregadio está te ensinando a ler e
escrever. — E mordeu agora um pedaço da madeira, mastigando lentamente sem se
preocupar com farpas. — Você tá gostando?
— Estou sim. Acho engraçado como alguns de nossa corte se
refere a magia, como coisas misteriosas, segredos, complexidades imaginativas.
Pra mim esse mundo aqui que é misterioso. Seus muitos códigos, muitas geringonças
das quais as pessoas se tornam completamente dependentes. — Ela sorriu para o
grandalhão, simulando a humanidade que deveria ser-lhe inerente. — Eu posso não
saber ler, escrever ou calcular, mas as promessas, por exemplo, são pra mim
como os humanos negociam seu precioso dinheiro. Eu simplesmente sei fazer, sei
reconhecer as trapaças e tudo mais. Acho engraçado como minha percepção desse
lugar me faz capaz de conseguir tudo o que quero através das brechas que a
cultura os faz ignorar.
— Para quem diz domar os benefícios da ignorância, você fala
muito bem. — O ogro se levantou e foi até a beira mar beber água salgada. Lavou
as mãos como se tivesse comido algo gorduroso e voltou para ficar em silêncio
junto a garotinha. — Você também está muito boa em parecer ser só uma menininha
como as que cresceram aqui.
— É verdade, eu me esforço muito para isso. Dois anos atrás
quando eu cheguei eu mal conseguia me comunicar. Não sabia como lidar com as
pessoas ou como me vestir. Só pensava em onde me esconder, onde conseguir
comida, quem era perigoso e eu devia abater antes que me abatesse... Eu era...
Inocente!? — Ela brincou com os cabelos propositalmente, sendo metódica como se
reproduzisse uma lição. — O escorregadio me ensinou a ser humana, e eu sou boa
nisso porque sempre soube como a camuflagem é uma boa forma de proteção. Além
de que, esse monstro que eu sou agora é um monstro muito melhor do que parecer
com meu protetor.
Leviatã não se lembrava muito bem, mas seu raptor original
era uma fada da beleza e da música, que apesar de ser capaz de encantar a todos
e inspirar as maiores criações era incapaz, ela mesma, de criar algo digno. Em
maior parte por se entediar do processo de criação em andamento, em parte por
não ver utilidade em algo feito por ela, e não para ela. Ela inspirou os
mortais para fazerem aquela criança, e a levou para Feéria como lhe era devido.
Até mesmo deixou um dos seus trabalhos inacabados no lugar, uma criancinha feita
de lixo, folhas e sombras que cresceu doente e logo morreu. Aqueles pais se
separaram e se mudaram, criando novas famílias longe dali e se esquecendo da criancinha
assustadora que por um curto espaço de tempo criaram.
Essa fada da beleza, por sua vez, se cansava das obras que
faziam para ela, e logo trocou o bebê pela direito de passar por uma montanha
cheia de gigantes devoradores de gente. E o bebê só não foi comido porque os
gingantes decidiram que era melhor esperar crescer para oferecer uma refeição
mais satisfatória.
E o bebê cresceu. Cresceu tanto que mesmo sendo uma criança
era do tamanho dos gigantes, e eles não conseguiam mais comê-la facilmente, e
só tentavam fazer isso quando ninguém tentava passar pela montanha por muito
tempo, deixando-os com fome demais. Essa criança tornara-se esperta, e nunca
contara ou mostrara aos gingantes que ela era capaz de encolher. E quando
encolhia ao tamanho dos humanos, ia até os vilarejos ao pé da montanha e com
algumas poucas lágrimas logo conseguia atrair comida suficiente para os
gigantes para ser deixada em paz. Comida suficiente para ela crescer cada vez
mais, até poder comer os gigantes também.
E comer a montanha.
— Me diga, Abraham, dessas pessoas que vivem aqui debaixo da ponte... alguma delas matou alguém?
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