terça-feira, 24 de abril de 2012

A dança imprecisa


Nessa cidade a hipocrisia é ferramenta de trabalho de tantos perdidos que já se encontra banalizada. São todos tão aptos a condenar nos outros seus próprios pecados que já não se pode classificá-los.

Seus próprios pecados, isso sim é um rótulo válido para o feudo franco. Da torre de gelo ao cetro do sol, da coroa de flores a árvore de três galhos; a todo lado há sempre um perdido pronto a ser muito mais monstruoso por dentro do que é por fora. Atacam-se, se ofendem, menosprezam ou banem uns aos outros em um escandaloso, ou raramente sutil, jogo de egos e rancores. Nessa terra de leis parciais vive um povo perdido, não de direção, mas de moral.

É bem fácil se embalar pela doce canção de guerra e velório do lugar, aprender os passos desse baile inconscientemente, como uma criança aprendendo a andar. Aqui, como toda boa rixa política, a história é manipulada. O passado tem tantas versões que mais parece o futuro. Dos loucos ou inconvenientes trancados nos porões do verão ouve-se muitas verdades, ou meras fantasias. São como o teclar do piano, firmes e convincentes, mas muito difíceis de decifrar e descrever.


Algumas histórias por lá são particularmente fascinantes; a do leão leal enjaulado por sua honra, por exemplo. Os primaverais se regozijam com tamanha estupides. O antigo xerife do fogo que incapaz de abandonar seus votos para com um rei banido se dedicou, violentamente, a provar a inocência do mesmo. Muitos narizes quebrados na maioria das versões dessa história. Um leão que fora domado as chicotadas por seus próprios irmãos de guerra até o esquecimento de seu cárcere. Que punição terrível! Que falta de compaixão poderia fazer um perdido, um sobrevivente dos mais tenebrosos sequestros, trancafiar um igual até a completa insanidade? Que pecado um homem em busca da verdade pode cometer para merecer a mais vil das crueldades?

Claro que essa não é uma história que a Corte Carmesim conte por ai. Esse tipo de segredo é melhor negociado das mãos dos perigosos filhos do Espelho Plúmbeo.

A pouquíssimo tempo uma das vergonhas do porão do verão foi ‘liberada’ de volta ao seio da Corte Centrada. Esse é o valor dos segredos, o Outono como bons entendedores do medo sabem quão valioso é agir a sombra das ameaças imaginadas pelos outros. Seu membro tido como louco agora podia escrever, recitar, ou encenar todas as coisas sórdidas e nojentas que ouvira nos corredores daquele manicômio. Coisas que faziam seu habito de comer carne humana, um comportamento que não lhe era exclusivo dentre a Corte do Medo, parecer tolerável.

O medo imaginário em questão, o grande trunfo do Outono, constituía-se de um simples pressagio vinda da boca da velha Bruxa da Floresta: “O Circo está chegando a cidade”.

Como aquilo poderia ser tão assustador? Tratava-se de um Feé verdadeiro rompendo a Sebe para arrastar os perdidos de volta a seus sofrimentos? Isso já acontecera antes e não fora motivo para uma tão impensada negociação. O Verão temia o circo com um fervor novo, era a manifestação final do ‘bichinho da loucura’, a manifestação física, mas não tão material para que eles pudessem simplesmente resolver com suas violências, do oniroveneno que por dez anos esperou latente e adormecido no fundo de tantas mentes.

Uma ideia contagiosa que podia se manifestar como carne e rasgar cada um dos perdidos da cidade. Usar seus sonhos e pesadelos. Furar suas almas. Era o anúncio da chega do circo a trombeta de um exercito inimigo que as armas do verão não poderia ferir.

Pobre Verão, já tão mutilado, jogado diante de palhaços de ódio solido, dispostos a arrancar-lhes gargalhadas de dor. O que poderia os pobres soldados condenados fazer se não um pacto com o diabo? Ou melhor, com vários diabos. O que Sangrento poderia perder para a Dama Branca ou para o Triunvirato que já não estivesse comprometido e maculado pelas dívidas com o Olhos Purpuras? Do que valia a alma de um guerreiro que não pode lutar?

O charme dos dançarinos mascarados não pode ser deixado de lado. Daqueles com pele de espelho que podem ter a aparência que lhe convierem, seja por regressarem assim das terras além espinhos ou aprenderem os truques com seus semelhantes ou as forças escondidas nas poças sujas da sebe. Não saber com quem se fala é um prato cheio para os segredos comprometidos, mas temer por todos os contatos faz do perdido um nítido paranoico que em pouco tempo será evitado e ridicularizado. Confiança é prato que se serve congelado, já dizia os velhos corvos do inverno.

Um povo que abandona o próprio nome, mas se horroriza diante daquilo que não podem nomear.

Essa combinação de medos, desconfianças e inseguranças leva um ou outro perdido a andar sozinho. E os jovens tendem a se perguntar por quê eles não deixam a cidade em busca de outro lugar? Fundamentalmente, a questão de conhecer os nomes. Viver entre venenos e loucuras nomeadas e melhor que o risco de se deparar com o que não se pode entender. Isso vale para o velho empoeirado com os números do inverno e para o enferrujado primaveral com colecionismo desenfreado. Esconder-se em meio a multidão te dá uma chance de escapar que a ocultação debaixo da cama nunca permitirá.

Se não bastasse suas picuinhas políticas e a chegada do circo, todo o feudo ainda tem de se preocupar com o que nunca deveriam ter parado. Os feé e seus lacaios. Dentre eles os indistinguíveis legalistas, perdidos que vivem no mundo dos homens mas ainda obedecem seus mestres encantados. Sabendo disso ou não. Um caso curioso, e inexplicavelmente pouco relevado é o estranho romance entre a tida traidora do verão, a arenosa mulher que tinha o trabalho de caçar tais legalistas e fora acusada e sentenciada culpada por se apaixonar e ajudar um deles. Uma história mal contada, cheia de falhas e lacunas. Quisera o Outono por as mãos em tão ardilosos passos de valsa feitos pelas outras três cortes no que diz respeito a isso.

Uma cidade que se esquece da lua, e do poder que ela tem sobre tudo que é magico.

Do peito que queima por guerra dos veranistas. Das lagrimas de congelam nos olhos dos invernais. Do suor de prazer que escorre nas costas dos primaverais. Das pontas dos dedos sujos com a poeira de velhos livros dos outonais.

A cidade sangra pela faca da traição.

A cidade clama por novos soldados para irrigarem seus campos de intriga.

A cidade nasceu para o mal. Essa é uma dança sem sobreviventes.

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