“Eles me prenderam aqui. Me amarraram como se eu fosse um
animal. Fizeram comigo o pior que se pode fazer a um perdido... Me raptaram. Me
tiraram de minha vida e me obrigaram a isso... uma sala acolchoada e isolada na
sebe. Eles não tem noção de como isso me deixa puto!”.
Arthur, Coração de Leão, é um membro um tanto quanto antigo
do feudo-franco de São Francisco. Por muito tempo foi o Xerife do fogo sob o
comando de Tim, o Solar. Alguns até poderiam implicar com a coincidência dele
ser trancafiado no sanatório meses depois de seu líder ser banido da cidade. Na
época ele era o mais interessado em colocar o evento em pratos limpos... Mas
não era possível negar que seus métodos eram um tanto quanto violentos demais.
“Violento demais... violento demais... Quem eles pensam que
eu sou?! Violência é o que eu vou fazer quando sair daqui. Malditos miseráveis!
Bando de ratos influenciáveis!”.
Passava os dias confinado nos alojamentos secretos do hospício
do verão. Enterrado nas profundezas de um fortificado vão na sebe, a fim de
amenizar seus rompantes de violência. Na época de sua ‘condenação’ havia uma
quantidade razoável de acusações sobre agressão. Tanto de outros membros do
verão quanto da primavera. Até mesmo um membro do outono havia sido agredido
por ele na busca incessante pela verdade. Mas agora era mantido ali, sem
qualquer acesso ao glamour, dado ao fato de repetidamente transmitir seus
rompantes de fúria para os outros internos. E frequentemente sedado para se
tornar ao menos relacionável durante suas sessões de ‘tratamento’.
E se fosse ele capaz de superar qualquer raiva que sentia
pelos envolvidos na troca de seu antigo líder, isso seria feito pela transferência
de seu ódio a Todd, o psiquiatra.
— Nina, pode me ouvir? — Ele, literalmente falava com a
parede.
— O suficiente, Leão. — A parede lhe respondeu. — Você está
machucado? Eu posso te ajudar? Deixe-me te ajudar...
— Controle-se garota! Assim como eu você está seca. Eles
também te mantem sem acesso a seus contratos. — Arthur estava ali há tanto
tempo, e ouvia tantas histórias ditas pela porta que conhecia cada um dos
internos. Cada uma das infelizes almas que se sujeitavam ao mesmo sofrimento
que ele. — Escute-me, Nina. O Psiquiatra conhece minhas capacidades, pois elas
também são as dele. Ele me mantem sedado todos os dias quando o sol se aproxima
de seu ápice, pois sabe que eu poderia despertar toda minha raiva mesmo sem
glamour.
Os poderes dos changelings eram adequadamente chamados de
contratos devido a momentos como aquele. Além dos contos sobre como antigos perdidos
haviam feito um acordo com as forças da realidade, a característica que definia
aqueles poderes como um contrato era o fato de que suas cláusulas tinham
brechas. Arthur lutou muito durante seu tempo como xerife do fogo, e isso o
permitiu conhecer intimamente os dons de sua feição, a força do coração do leão
dentro dele, e as habilidades que seu alvo de grande devoção, o verão,
dava-lhe. Infelizmente ao ser privado de glamour, tornou-se incapaz de acessar
os poderes do leão, mas ainda existiam maneiras de usufruir do poder do verão,
e só precisava convencer ‘honestamente’ a jovem perturbada Nina a fazer a parte
dela no mirabolante plano de fuga.
Claro que a vinculação com o ‘inimigo’ da primavera em
questão levou muito tempo para ser aceita por ele mesmo. E na ironia da coisa,
seria possível agradecer o psiquiatra por ter-lhe direcionado o ódio a ponto
dele conseguir pensar lucidamente sobre isso.
— Se você despertar sua raiva, muitas pessoas vão se ferir,
não é? Você vai se ferir? Eu vou poder ajudar? — Dizia a voz além da parede.
Voz que tremia simultaneamente de receio e expectativa. — Como eu ajudo-o a
ferir tantas pessoas? Digo... O que preciso fazer para fugirmos daqui?
— A hipocrisia do Psiquiatra é nossa arma, Nina. — Ele
encostou a testa na parede que o separava da garota. Apesar dele não a ver e
dela ser um membro da odiada primavera, durante muito tempo era a única
companhia dele. E mesmo ele percebendo a loucura em tudo que ela dizia, era
muito difícil não se afeiçoar. — Eles te mantem aqui porque dizer que está
viciada em curar os feridos... que isso tornou-se autodestrutivo e que você
vinha tendo comportamentos sociopatas para que pessoas se machucassem e você
tivesse a oportunidade de agir...
Arthur engoliu seco por um instante, sentia-se péssimo por
manipular aquela garota. Ele realmente sempre preferira o confronto franco e
direto com todos os problemas, abominava esse tipo de estratégia manipulativa e
dissimulada, mas não havia restado alternativas.
— Não entendo como isso pode ser errado. Digo, querer ajudar
as pessoas! Eu não machucaria ninguém... Eu amo demasiadamente a vida. É só
isso... é só isso... — A voz se aproximou, provavelmente ela também se
encostara na parede do outro lado. — Você acha que eu sou essa pessoa ruim que
eles imaginam?
— Não, você é uma pessoa maravilhosa, Nina. — Falava por
entre seus conflitos. — Mas você está aqui já faz algum tempo, e não ouvimos
falar sobre sua corte tentar lhe ajudar... A final você não estava apenas
seguindo seus desejos? Nós precisamos nos ajudar, já que ninguém parece
interessado em fazê-lo. Preciso que você finja um tipo de ataque da próxima vez
que o hipócrita do psiquiatra te tirar daqui para salvar a vida de alguém lá em
cima. Algo que o distraia tempo suficiente para ele perder a hora de me sedar
antes do sol a pino.
Isso era algo que incomodava Arthur profundamente. A forma
como Todd ‘tratava’ Nina. Usando-a para seus próprios interesses em curar
outros perdidos, ou mesmo humanos, que estavam além de sua capacidade médica. Segundo
o hipócrita, só estava dosando a aplicação de cura da garota, ensinando-a que
existiam momentos certos para aplicar sua obsessão.
— Eu posso fazer isso, posso tentar lutar contra eles quando
tentarem me dopar... Mas não acho que isso durará muito tempo. A menos que os horários
se coincidam, e eu não tenho muita noção do tempo aqui embaixo. —E havia algum
medo em sua voz. — Eu poderei cuidar da pessoa antes, não é mesmo?
— Esse é ponto, Nina. Você não pode. Precisará resistir a
isso. Por nós, pela nossa fuga... — E então, surgia o memento da fala que mais
lhe feria os próprios princípios. — Pense em quantas pessoas se ferirão durante
a fuga, e como elas precisarão de você!
Esse era o ponto máximo do plano. Considerando que para
curar as pessoas Nina precisaria de Glamour, era obvio que o psiquiatra a
levaria até fontes úteis. Isso já vinha acontecendo a tempos, esses usos
inadequados dos dons dela, Arthur sabia também que ela não se limitava ao que
ele oferecia a ela para o evento, sempre pegando um pouco mais, sempre
guardando um pouquinho de glamour na esperança de ter ainda mais oportunidades
de usa-lo. Era com isso que Arthur contava, Nina estando certa sobre a
incompatibilidade de horários, ele estava disposto a forjar com ela uma
promessa de bando. Unir-se a ela ao ponto de poderem comungar do Glamour que
ela carregaria se resistisse a tentação de curar uma pessoa.
E essa a força que ele precisaria para arrebentar com
camisas de força e portas. No fim, a vontade dela também seria atendida,
haveria muitas, muitas pessoas feridas.
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